16/09/2010
DEUSA IDUN
Idun e as maçãs da juventude
Odin e Loki estavam passeando, certa feita, por uma inóspita região. O primeiro
adorava vagar por toda a parte, muitas vezes, recorrendo ao disfarce de andarilho, e, se
devia a algo o facto de ser considerado o mais sábio dos deuses, era, justamente, à sua
inesgotável curiosidade.
- A curiosidade é o que diferencia o homem superior do medíocre - dizia ele a Loki,
tentando instruí-lo. - Na verdade, há apenas duas classes de homens: os despertos e os
adormecidos; os primeiros são aqueles que já acordaram do sono bruto da indiferença, no
qual os outros ainda estão miseravelmente imersos. Um sono imbecilizante, que os faz
crer que a vida se resume à meia dúzia de funções orgânicas, exceto a mais nobre: a de
usar os seus próprios cérebros para criar algo de belo, que os tome felizes como um
deus. E isto - arremactou Odin - somente alguém dotado de curiosidade pode fazer, ou
seja, alguém desperto.
Loki, que ainda estava na classe intermediária dos sonâmbulos, começou a sentir
um sono que ameaçava transportá-lo de volta ao reino dos adormecidos. Mas, foi salvo
pela fome - a madrasta comum de todos -, que o obrigou a interromper a predica de Odin.
- Tudo isto é muito bonito, mas estou com uma fome dos diabos - disse ele, que já
estava tomando uma coloração esverdeada.
- Muito bem, vamos comer, então - disse o deus, largando no chão o alforje.
Mas esta expressão na boca de Odin era um mero eufemismo, pois seu único
alimento era o hidromel, a bebida sagrada dos deuses. Loki, entretanto, que tinha muito
pouco de deus, começou a armar às pressas uma pequena fogueira. Logo um grande
pedaço de carne assava gloriosamente, espalhando pelas redondezas o seu atraente
perfume.
Enquanto Loki eslava acocorado diante da fogueira, comendo pelo nariz, Odin, que
eslava especialmente inspirado naquele dia, retomara sua lição:
- Diz uma lenda muito antiga, que um dia um jovem encontrou uma caixa velha e, ao
abri-la, viu sair de dentro um gênio poderoso - disse o deus, tomando placidamente o seu
hidromel. - A criatura, pródiga em poderes, perguntou-lhe, então: "Você tem direito a um
único pedido, reles mortal!" Depois de se recuperar do susto, o reles mortal o encarou e
disse: "Qualquer um?", e o gênio respondeu: "Qualquer um, menos a imortalidade!"
Então, depois de refletir um pouco, o jovem teve uma brilhante ideia: "Já sei!", pensou ele.
"Em vez de fazer um pedido que me acrescente algo - ou seja, uma nova necessidade -,
farei outro, que acabará com quase todas elas!". Voltando o olhar para o gênio, disse-lhe:
"Retire já o meu estômago!" Desde então, este jovem felizardo passou a ser o homem
mais livre que a terra já conheceu.
Loki, no entanto, não escutou direito a fábula (e, certamente, não a teria aprovado,
se a tivesse escutado), ocupado que estava em abanar o fogo, quase apagado por força
de uma ventania inesperada que surgira do nada.
- Droga! - exclamou ele, com as bochechas escarlates de tanto assoprar. - De onde
veio a droga deste vento?
Somente, então, perceberam que acima das suas cabeças, empoleirada num alto
galho, estava uma imensa águia - na verdade, a maior águia que seus olhos já haviam
contemplado. A criatura abanava suas asas, parecendo fazê-lo de propósito.
- O que pensa que está fazendo, águia idiota? - gritou Loki, mostrando-lhe o punho.
- Refrescando-me - disse ela, com uma voz gutural, que nada tinha a ver com o grito
estridente da águia.
- Senhora ave, por que o deboche? - disse Odin, mudando o tom da interpelação.
- Vocês não querem comer? - disse ela, parando por um instante de abanar seus
dois gigantescos leques empenados. - Então, deixem que antes eu me sirva desta carne
saborosa.
Loki, sem ver outro meio de comer aquele dia, acabou por ceder.
- Está bem, mas veja se deixa algo sólido para mim!
- Naturalmente!...
- E algo bastante bom!
- Naturalmente, naturalmente!...O fogo ardeu outra vez e, dali a alguns instantes, a
águia descia de seu poleiro para se refestelar.
- Hmmrn! Que delícia de carne! - dizia a águia, engolindo os pedaços aos bocados. -
Meus parabéns, senhor assador...!
Sem dar ouvidos, entretanto, às queixas do esfomeado Loki, a águia devorou tudo,
deixando no espeto apenas os ossos do boi.
- Maldita tratante! - exclamou Loki. - Veja só o que me deixou!
- Não queria algo bastante sólido? - disse a águia, dando risada e agitando as asas
num acesso de hilaridade.
Mas Loki não achou graça nenhuma na piada e, por isto, agarrou num galho fino e
comprido que viu caído ao chão e começou a vergastar o lombo da águia.
Contudo, no primeiro golpe, percebeu que o galho colara-se às penas da águia;
esta, por sua vez, vendo-se maltratada, ergueu vôo imediatamente. Foi, então, que Loki
descobriu, aterrado, que levantara vôo junto, pois suas mãos haviam grudado no galho,
como por mágica.
- O que é isto? Socorro! - berrou ele até sumir no céu como um pontinho.
Sem dizer nada, a águia desceu, abruptamente, dando um vôo rasante um pouco
acima de uma espessa floresta, de tal modo, que sua presa foi se chocando contra os
ásperos galhos e os espinhos das árvores.
- Ai!... Ui!... - gritava o pobre Loki, esbarrando nas árvores em altíssima velocidade. -
Pare com isto, por caridade!...
Mas a águia, surda aos apelos, engendrara um novo suplício, retirando Loki todo
ensanguentado da floresta e o levando até as águas salgadas do mar, onde mergulhou-o,
sem contudo nunca cessar de voar.
- Um salzinho ajuda a sarar as feridas! - disse ela, com um grande riso.
Quando o desgraçado saiu de dentro da água, estava mais morto que vivo e, por
isto, a águia resolveu abrir o jogo de uma vez:
- Muito bem, agora, preste atenção! - disse ela, subindo às alturas até quase
alcançar o próprio sol. - Eu não sou uma águia, coisa nenhuma, mas o gigante Thiassi,
disfarçado. Se quiser escapar de minhas garras, terá de me fazer uma promessa!
Loki, que já provara dos arranhões da floresta e da água salobra do mar, agora.
estava às voltas com um calor sufocante, que o cozia em pleno ar.
- Está bem, está bem, eu prometo, seja lá o que for!
- Bela frase...! - disse o gigante alado. - Você fará, então, o seguinte: trará até mim a
bela Idun e suas maravilhosas maçãs mágicas!
Thiassi referia-se à deusa da juventude, de cujo pomar mágico brotavam maçãs
rejuvenescedoras. Desde que o mundo fora criado que os gigantes e os anões haviam
ambicionado provar destes frutos, mas eles eram propriedade exclusiva dos deuses.
- Enfim, chegou a hora de dividir a imortalidade entre todos! - exclamou Thiassi,
lambendo-se todo e se imaginando jovem e esbelto outra vez.
***
Loki foi libertado e tractou de procurar imediatamente a bela Idun.
- Loki, você por aqui? - disse ela, uma jovem loira, que tinha o olhar manso e o corpo
esbelto das corças.
A deusa estava justamente colhendo as maçãs no seu perfumado pomar. Grandes
frutos, vermelhos como grandes rubis, resplendiam dentro de seu cesto dourado. Podiase
imaginar o gosto sumarento de sua polpa amarela e úmida na boca, mesmo antes que
eles fossem provados.
- Você já não comeu a sua maçã recentemente? - disse ela, intrigada. -Lembre-se
de que a próxima refeição ainda está longe.
- Oh, pouco importa! - disse ele, afetando um ar de desprezo. - Afinal, quem vai
querer estas maçãs horrorosas, quando tem ao alcance outras infinitamente mais
saborosas e rejuvenescedoras?
- O que está dizendo? - disse Idun, tornando-se séria.
- Isto mesmo que você ouviu - retrucou Loki, enfático. - Descobri um outro bosque,
muito mais belo que este, onde vicejam as mais belas maçãs da juventude de todo o
universo.
A deusa, sem querer admitir que isto fosse possível, aceitou de imediacto ir até lá
para ver se Loki dizia a verdade.
- Claro, vamos até lá - disse ele, animado. - Mas leve consigo o seu cesto, para
podermos compará-las; estão todas aí?
Sim, estavam, e logo ambos rumavam para o misterioso pomar. Mas, nem bem
haviam colocado o pé para Cora de Asgard quando a mesma águia que raptara Loki
desceu das alturas e cravou suas garras na jovem deusa, levando-a consigo para
Jotunheim, a terra dos gigantes.
- Socorro...! Salve-me...! - implorava a deusa, mas Loki já estava bem longe, uma
vez salva a sua adorada pele.
Imediatamente, os deuses começaram a perceber os efeitos da ausência de Idun e
de suas imprescindíveis maçãs: os cabelos de todos começaram a se tornar grisalhos e
suas faces a se enrugar espantosamente. Como todos eles eram muito antigos, o tempo,
uma vez restabelecido na sua autoridade, começara a cobrar as parcelas atrasadas com
grande voracidade.
Thor, por exemplo, apareceu um dia manquitolando, usando seu martelo como um
bastão de idoso; seus cabelos compridos, outrora lisos e loiros, agora, não passavam de
uma palha esbranquiçada que o vento arrancava aos punhados.
- Cadê as machãs, as malditas machãs! - dizia ele, banguelando, pois seus dentes
haviam desertado em massa da boca chupada.
Frigga, a esposa de Odin, por sua vez, que sempre se gabara de sua beleza, surgira
agora virada numa velha decrépita e senil a exigir em prantos o alimento reparador. O
próprio Odin - que de tão velho já tinha os cabelos brancos antes mesmo de deixar de
comer as maçãs - parecia, agora, um ponto de interrogação, sentado no seu trono de
rodas, com o nariz recurvo encaixado ao umbigo. Sua propalada sabedoria havia sumido
e a caduquice mais apavorante havia se apossado de sua outrora fulgurante inteligência.
Empurrando seu trono, vinha Heimdall, o vigia de Asgard, que agora era incapaz de
enxergar um palmo adiante do próprio nariz. Seus ouvidos afiados, que, outrora eram
capazes de escutar até a grama crescer agora, não seriam capazes nem de escutar um
vulcão que se abrisse a seus pés.
Todos eles, enfim, estavam aos pedaços. Então, Loki chegou também com os
cabelos esbranquiçados e aparentando velhice; mas era tudo disfarce seu e, por dentro,
ele se ria, deliciado da decadência dos deuses.
"Um bando de deuses caducos!", pensava ele, regozijando-se com a desgraça que
reinava em todo o Olimpo. Ele, entretanto, permanecia jovem sob o disfarce, pois
continuava a se alimentar secretamente das maçãs de Idun, que o gigante Thiassi havia
lhe cedido como recompensa.
Loki, você não sabe que fim levou Idun? - perguntou-lhe Thor, cercado pelos outros
deuses decrépitos.
Loki, fingindo-se tão senil quanto qualquer um deles, resmungou algo sem nexo,
babando-se todo. Mas, neste exacto momento, uma tempestade desabou, fazendo com
que a cinza que havia espalhado sobre o cabelo desbotasse e as teias de aranha que
havia posto sobre o rosto como simulacros de rugas, se desmanchassem, revelando,
claramente, a sua juventude inalterada.
- Seu tratante! - exclamou Tyr, o deus maneta, apontando o único punho fechado
sobre o rosto de Loki. Uma bengala desceu sobre as suas costas e Thor ameaçou
despedaçá-lo com seu martelo - pois o Miollnir dourado não havia envelhecido.
Heimdall, seu figadal inimigo, aproximou-se e o ameaçou:
- Trate de trazer Idun de volta com suas maçãs ou farei com que o velho Odin lance
um tal esconjuro de suas runas mágicas sobre você que jamais tornará a ser o que era!
Loki, que sabia o estado no qual o velho deus se encontrava, e temendo que nunca
mais ele pudesse desfazer a maldição, resolveu reconsiderar.
- Está bem, vou dar um jeito de trazer de volta a deusa e as maçãs.
***
Freya, a deusa do amor, emprestou a Loki, mais uma vez, o seu casaco de pele de
falcão, o que lhe possibilitou viajar rapidamente até o esconderijo do gigante Thiassi,
mesmo local onde ficava o cativeiro da deusa da juventude.
Felizmente, quando lá chegou, encontrou-a sozinha, pois o gigante havia saído. A
pobre Idun, que de jovem não tinha mais nada, também estava inteiramente caquética,
parecendo agora a deusa da velhice, pois o perverso Thiassi havia impedido que ela se
alimentasse dos frutos.
- De hoje em diante somente os gigantes serão jovens e fortes! - exclamara ele, num
acesso de loucura perversa.
Loki, imediatamente, pegou um fruto do cesto - que estava bem escondido na
caverna - e o deu para que Idun o comesse. A deusa, instantaneamente, recobrou seu
antigo viço e beleza.
- Seu traidor infame, o que quer aqui? - disse ela, lembrando de tudo.
- Vim libertá-la - disse ele. - Feche os olhos.
Loki recitou um encantamento rúnico, que a custo conseguira arrancar de Odin, o
que possibilitou transformar a deusa numa minúscula noz. Depois, metamorfoseado ainda
em falcão, estendeu as asas e se lançou ao espaço, carregando numa das garras a
pequena noz-Idun e, na outra, o cesto com os frutos mágicos.
Já estavam ambos a meio do caminho, porém, quando Loki percebeu que Thiassi
vinha no seu encalço, virado na mesma águia de antes.
- Devolva já as minhas ricas maçãs! - berrava, esganiçadamente, a águia.
Uma perseguição alucinante cortou os céus em direção a Asgard. As batidas das
asas gigantescas da águia eram tão fortes que juntaram uma grande quantidade de
nuvens escuras e tempestuosas. De longe, os deuses perceberam a aproximação do
temporal. Thor, que ainda tinha o olhar um pouquinho melhor que o dos demais, avistou o
gavião trazendo Idun e o cesto:
- Depressa, vamos preparar uma fogueira! - bradou ele, apoiado ao martelo.
Apesar de tropeçar e esbarrar uns nos outros, os deuses conseguiram fazer o que
Thor sugerira. Tão logo Loki pousou, devolvendo Idun ao convívio dos deuses, a águia
medonha aproximou-se, guinchando pavorosamente.
- Agora, deixem comigo! - disse Thor, erguendo a custo seu martelo e dando uma
grande pancada sobre uma rocha, o que provocou uma chuva de faíscas, acendendo a
fogueira. A águia tentou deter o seu vôo, lançando as patas para diante, como se pudesse
travar seu avanço em pleno vôo, mas era tarde demais: logo as labaredas envolveram-na,
completamente, e ela se transformou num único grito de dor e de chamas. Somente seus
olhos sobraram do grande holocausto, que Odin - já restabelecido após haver comido
uma das maçãs rejuvenescedoras - tomou na suas mãos, lançando-os em seguida para o
céu, onde vieram a se transformar em duas luminosas estrelas.
Assinar:
Postagens (Atom)