18/07/2010
DEUS ARAWN
Gwynn ap Nudd e Arawn Mar 13, '09 12:02 AM
para todos
Na tradição céltica britânica, há dois nomes que vamos encontrar relacionados à soberania do Outro Mundo dos Mortos e do Povo das Fadas: Gwynn ap Nudd e Arawn.
Existe um conto do “Mabinogion”, a obra-prima da literatura galesa medieval, chamado “Culhwch e Olwen, ou o Twrch Trwyth”. Nesse conto, Gwynn ap Nudd é mencionado na seguinte passagem:
“Um pouco antes disso, Creiddylad, a filha de Llud Llaw Ereint, e Gwythyr, o filho de Greidawl, estavam prometidos. Antes que ela se tornasse sua noiva, Gwynn ap Nudd veio e raptou-a pela força; e Gwythyr, o filho de Greidawl, reuniu seus homens e foi lutar com Gwyn ap Nudd. Mas Gwynn superou-o e capturou Greid, o filho de Eri, e Glinneu, o filho de Taran, e Gwrgwst Ledlwn e Dynarth, seu filho. E ele capturou Penn, o filho de Nethawg, e Nwython e Cyledyr Wyllt, seu filho. E ele matou Nwython e arrancou seu coração e obrigou Cyledyr a comer o coração de seu pai. E a partir daí Cyledyr tornou-se louco. Quando Arthur ouviu falar a esse respeito, ele foi para o norte e convocou Gwynn ap Nudd a comparecer perante ele e libertar os nobres que havia aprisionado e a fazer a paz entre Gwyn ap Nudd e Gwythir, o filho de Greidawl. E esta foi a paz feita: a donzela permaneceria na casa de seu pai sem vantagem para qualquer deles e Gwynn ap Nudd e Gwythyr, o filho de Greidawl, lutariam a cada primeiro de maio, daquela data até o Dia do Julgamento, e qualquer deles que fosse então o vencedor obteria a donzela.”
Vamos examinar alguns desses personagens. Mirella Faur (“Anuário da Grande Mãe”, Ed. Gaia, 1999) apresenta Creiddylad (Cordélia) como uma deusa da terra e da natureza. Já vi (mas não me lembro onde) o seu nome citado como deusa do amor.
Lludd Llaw Ereint é mais interessante. Llaw Ereint significa “Mão de Prata”. Assim, ele é o correspondente do irlandês Nuada Argetlamh, pois Argetlamh também quer dizer “Mão de Prata”. A lenda conta que Lludd era o filho de Beli (que passa por ser o deus da morte) e foi um dos antigos reis da Grã-Bretanha, como seu pai. Aliás, foi ele quem construiu Londres, cujo antigo nome galês é Caer Lludd, ou seja, o “Castelo de Lludd”, como se narra em “Lludd e Llefelys”, do “Mabinogion”. London ou Lwndrys (de onde vem o português Londres) foi o nome que os saxões mais tarde deram a essa cidade. Ainda existe em Londres um lugar chamado Ludgate, o “portal de Llud”, onde a tradição diz que foram colocadas as cinzas desse soberano. Entretanto, o Lludd britânico e o Nuada gaélico são ambos transformações de uma divindade mais antiga, Nodens, um deus da cura, cujos cães mágicos também se acreditava fossem capazes de curar os doentes. As ruínas de um grande templo dedicado a ele, datando do período da ocupação romana, foram encontradas nas proximidades do rio Severn (Arthur Cotterell, “The Encyclopedia of Mithology”, Lorenz Books, New York, 1999). Veja que interessante: Nodens – Nuada (Irlanda) – Lludd (Grã-Bretanha). O outro nome de Lludd é Nudd (Nodens). Desse modo, ele próprio é o pai de Gwynn, a não ser, é claro, que exista um outro Nudd. Mas penso que não.
“Glineu ap Taran”, Glineu, filho (ou descendente) de Taran. Essa é uma das raras passagens da literatura céltica britânica em que uma divindade dos celtas continentais é lembrada. Geralmente, deuses continentais surgem de forma muito modificada na literatura insular (na Irlanda, Connall Cernach, por exemplo, experimentalmente identificado com Cernunnos), desempenhando funções muito secundárias ou então apenas seus nomes são mencionados, como é o caso aqui. “Taran” é Taranis, o “Trovejante”, deus gaulês do céu, das tempestades e raios, que os romanos equipararam ao seu Júpiter. Seus símbolos são a roda e o tridente, ou lança de três pontas.
Por fim, o próprio Gwynn ap Nudd. Gwynn foi o deus galês da caça, ou seja, o guardião da vida selvagem, aquele que permite aos humanos alimentarem-se do seu rebanho e providencia para que a vida sempre se renove. Ele é o deus caçador e o deus a quem oravam os caçadores ao penetrarem na floresta, domínio de Gwynn, para buscarem a carne que iria sustentá-los e às suas famílias, as peles com que se cobririam nos meses frios de inverno. Porém, se um dia é do caçador, o outro é da caça... Lembra-se do mito de Adônis, que foi morto por um javali? O mesmo terá acontecido a muitos caçadores célticos. Nesse caso, o deus exigiu um sacrifício pelos dons que foram concedidos em outras ocasiões. Gwynn é um deus selvagem e poderoso, daí a crueza do seu comportamento, tal como registrado no conto do “Mabinogion”. Também por isso foi ele escolhido, ao firmar-se o cristianismo, como aquele que é capaz de controlar os demônios e mantê-los dentro de certos limites. Sua capacidade de tomar as vidas dos caçadores como tributo é lembrada em seu papel de líder da “Wild Hunt”, a “Caçada Selvagem”, em que, diz-se, Gwynn ap Nudd lidera as forças do mal e do caos numa busca frenética de viajantes solitários cujas almas serão capturadas e levadas ao inferno. Mas fique isto claro: Gwynn não é o deus que governa o mundo dos mortos, ele é uma divindade guardiã, um protetor dos limites. Não é incomum, em grupos mágicos que trabalham numa orientação céltica, que Gwyn ap Nudd seja invocado para guardar o exterior do círculo mágico.
Quem é, então, o deus que efetivamente governa o Além? Na tradição irlandesa, a Terra da Juventude (“Tir na n-Óg”) é governada pelo Senhor das Brumas, Manannan mac Lir. Na tradição galesa, por Arawn, o Rei de Annwfyn. Como estamos tratando de temas galeses, é neste que me deterei.
Arawn (“Língua Prateada”?) é mencionado também no “Mabinogion”, no assim chamado “Primeiro Ramo”, a história de “Pwyll, Pendeuig Dyfed”, “Pwyll, Príncipe de Dyfed”. Certa vez, Pwyll saiu para caçar. Ele se distanciou de seus companheiros e viu um veado numa clareira, sendo encurralado por cães puramente brancos de orelhas vermelhas (‘Cwn Annwn’, ‘Cães de Annwn’).”
Ele espantou esses cães e atiçou os seus próprios sobre o veado. Surgiu então Arawn, um cavaleiro montando um cavalo cinzento e vestindo roupas de caçar cinzentas, com um chifre de soprar ao redor do pescoço. Arawn censurou Pwyll pela sua falta de cortesia, depois se apresentando como um soberano de Annwfyn [an-nú-vin), isto é, o Outro Mundo. Pwyll lhe pede que indique um modo de desculpar-se pelo seu procedimento grosseiro e Arawn diz que o perdoará se ele enfrentar Hafgan (“Verão Branco”), um outro soberano do Além que todos os anos o desafia. Mas adverte Pwyll de que Hafgan tem de ser derrotado com um único golpe, pois, se for golpeado uma segunda vez, recuperará todo o seu vigor. Pwyll acompanha Arawn até o seu reino sobrenatural e lá eles trocam de forma: Arawn retorna a Dyfed (a região sul de Gales) com a aparência de Pwyll, enquanto este reinará sobre Annwfyn por um ano com a aparência de Arawn, compartilhando inclusive do leito da esposa dele (embora o autor da versão atual do conto, a fim de poupar a decência cristã, esclareça que nunca houve nada entre eles). É assim que Annwfyn é descrito nesse conto:
“Assim, Arawn conduziu-o até avistarem o palácio e suas habitações. ‘Vede’, disse Arawn, ‘a Corte e o reino em vosso poder. Entrai na Corte, ninguém lá vos reconhecerá e, quando virdes os serviços lá feitos, sabereis quais são seus costumes.’
“Pwyll então se adiantou para a Corte e, quando entrou, contemplou dormitórios e salões e câmaras e os mais belos edifícios jamais vistos. Ele entrou no salão para desmontar, vindo jovens e pajens auxiliá-lo, os quais os saudaram ao adentrarem as dependências do palácio. Vieram dois cavaleiros e tiraram-lhes as roupas de caça, vestindo-o com uma túnica de seda e ouro. O salão estava preparado e Pwyll viu a mansão e o anfitrião que nela entrava. Este era o mais gracioso dos anfitriões e o mais bem equipado que Pwyll havia conhecido. Com eles entrou igualmente a rainha e ele nunca vira mulher tão formosa. Ela trajava uma túnica de brilhante cetim amarelo. Eles se lavaram, foram para a mesa e sentaram-se, a rainha a um lado de Pwyll e do outro um que parecia ser um conde.
"Ele começou a conversar com a rainha e pensou, em razão de suas palavras, que ela era a senhora mais decente e de mais nobre conversação, bem como a mais alegre que já houvera. Partilharam a carne e a bebida, cantando e festejando. De todas as Cortes na terra, era esta a melhor provida de comida e bebida e recipientes de ouro e jóias reais.
"Quando chegou a hora de dormir, Pwyll e sua rainha foram para o leito. Ele virou seu rosto para a beira da cama e deu-lhe as costas, não lhe dizendo palavra alguma antes que amanhecesse. No dia seguinte, o carinho e a afeição voltavam à conversação deles, embora durante o ano que se seguiu noite alguma fosse diferente da primeira.”
Essa é uma das descrições que os celtas britânicos faziam do Outro Mundo, nada diferente dos “Sidhe” da tradição irlandesa, as colinas ocas (“hollow hills”) onde os Tuatha Dé Danann, derrotados pelos mortais gaélicos, refugiaram-se para levar uma existência encantada e de onde saíam em cavalgada na noite de Beltane para juntar-se aos humanos e, talvez, levar consigo uns poucos escolhidos que desfrutariam da mesma vida mágica, sem doenças ou velhice, dos Filhos de Danu.
Arawn é também mencionado em duas importantes obras do bardo Taliesin (séc. VI d. C.). O poema “Cadd Goddeu”, “A Batalha das Árvores”, e “Preiddeu Annwn”, “Os Espólios de Annwn”. O primeiro narra o combate movido por Arawn contra Amaethon ap Don, que lhe havia roubado um pássaro, um cão e um cervo. Nesse combate, o mago Gwydion ap Don usou seus poderes para transformar árvores em guerreiros, daí o nome do poema. Em “Os Espólios de Annwn”, Taliesin conta a viagem de Arthur e companheiros ao Outro Mundo (aí chamado “Caer Sidi”) para conseguirem o caldeirão mágico possuído por Arawn.
Já sabemos, então, quem é Gwynn ap Nudd, quem é Arawn e qual a descrição de Annwn ou Annwfyn. Resta apenas dizer que, de acordo com alguns estudiosos, Gwynn e Arawn são o mesmo. De acordo com outros, Gwyn seria o deus do Além em uma parte de Gales, enquanto na outra seria Arawn. E, de acordo com uma terceira corrente, “Arawn” seria apenas um título que poderia ser aplicado a mais de um personagem mítico. Se alguém me perguntasse o que penso, eu diria: dado o aspecto predominantemente local da maioria dos cultos e divindades célticos, o mais provável é que as três posições estejam corretas (ou nenhuma delas!!!), dependendo do celta a quem você perguntasse.
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